Se conectar é uma escolha - entrevista com alguém que não anda sempre conectada.

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O mundo na palma da mão! A ideia de estar conectado ao mundo num clique nos encantou desde os primórdios e a tecnologia não parou de evoluir desde então. Hoje ninguém mais vive sem um smartphone, afinal, o que seria de nós sem a comunicação via whatsapp? Os aplicativos de trocas de mensagens instantâneas ocupam o topo da lista no uso dos smartphones. Quem aqui não passou por aquela revolta quando ele foi bloqueado judicialmente e ficou algumas horas sem funcionar? É difícil imaginar quem sobreviva sem ele...mas essas pessoas existem, e sobrevivem super bem, diga-se de passagem.

Hoje eu quero falar sobre essas pessoas aparentemente revolucionárias que resolveram escolher uma vida sem essa obrigação da conexão permanente. Eu tive a ideia pra esse post lendo o livro O Blackberry de Hamlet (muito bom por sinal, vê a resenha dele aqui) onde ele fala sobre a vida ser diferentemente boa sem conexão. Imediatamente me lembrei da minha amiga Tássia, atualmente morando no Canadá, e que fez faculdade de Ciência da Computação comigo na UFBA. Eu, Tássia e Kika passamos por todos os 4 anos (e mais um pouco) da faculdade juntas, fazendo trabalhos, viajando e compartilhando essa fase maravilhosa. 

Hoje cada uma está em um canto. Eu no Rio, Tássia no Canadá, Kika nos Estados Unidos. Sempre que estamos na mesma cidade, nos encontramos. Mas essa não é uma das tarefas mais fáceis. A comunicação é toda por e-mail. Tássia não usa Whatsapp. Ela manda e-mail, a gente responde, marcamos data e hora e torcemos pra dar tudo certo. Sempre dá. E os nossos encontros são sempre maravilhosos. Continuamos lidando, cada uma do seu jeito, com a tecnologia e respeitamos as escolhas uma da outra. É verdade que a gente zoa muito Tássia pela falta do whatsapp e uso das redes sociais (sim, ela também não costuma usar facebook ou instagram), mas, no fundo, acho que a gente tem um pouquinho de inveja desse seu jeito autêntico.

Eu entendo Tássia, mas talvez pra você seja um pouco mais difícil entender. Por isso, eu resolvi convidar ela (por e-mail, claro) pra contar ela mesma o que está por trás dessa escolha. Mata a sua curiosidade e quem sabe não passa a fazer sentido pra você também! Garanto que pelo menos vai te fazer refletir um pouco sobre o estar conectado, o que é sempre válido.


Você tem um smartphone? Que uso você faz dele?


Tenho, mas não uso como telefone. Uso mais quando viajo ou quando sei que vou precisar tirar foto, ou usar o despertador, ou de ajuda pra chegar onde eu quero (GPS), etc. Não gosto da ideia de carregar comigo 24h um dispositivo que pode ser rastreado.
Um divisor de águas na minha relação com as "redes" foram os vazamentos de dados da NSA por Edward Snowden.

O documentário Citizenfour acompanha Snowden no momento dos vazamentos, retrata os sacrifícios pessoais desse "menino", na época com 29 anos, que 5 anos mais tarde ainda vive refugiado na Russia. Quando eu assisti o filme eu saí do Facebook e escrevi: "Vida longa aos denunciantes, ao jornalismo independente, aos hackers e a todos que lutam por direitos humanos. Por eles eu me posiciono e resisto. Não é justo que eles lutem sozinhos pela nossa liberdade."

Então, voltando pra sua pergunta, vejo meu smartphone como um computadorzinho compacto. Quando quero sair de casa, e ter um jeito de acessar email ou bate-papo de maneira discreta -- sem ter que abrir meu laptop cheio de adesivos do tipo "don't spy on me", "free as in freedom" -- eu levo o celular. Mas como não estou sempre conectada, dependo de uma conexão wifi pra colocar ele no mundo.


Que tipo de dificuldades você enfrenta pelo fato de não estar conectada o tempo todo?


Preciso de combinações certas. Por exemplo, não dá pra dizer "te encontro no shopping", e quando chegar lá você vai me ligar pra saber onde eu estou. Lembra como a gente fazia antes? Marcávamos um ponto de encontro, com horário, e tudo funcionava. Faço um esforço grande pra não me atrasar, e quando atraso, as pessoas exercitam a paciência, e confiam que estou a caminho. 

Geralmente saio de casa com a rota do dia mais acertada do que a maioria das pessoas: endereços anotados se vou algum lugar pela primeira vez, agendinha em papel, etc. Planejamento e organização são exercícios diários! E memória também: tenho o número de vários amigos decorados, o que somado a um telefone público geralmente resolve pepinos de desencontros. O fato de 99% das pessoas carregarem um telefone deixa essa tarefa mais fácil, é claro, mas também lido bem com os outros 1% que não carregam. Por exemplo, meu marido.

Lidar com imprevistos é um desafio. Quando algo não sai como esperado, me lembro de que não podemos controlar tudo, como você mesma tem falado sobre a organização. As vezes é frustrante, mas sempre aprendemos para em uma próxima vez não cometermos o mesmo vacilo. E a gente fica treinado pra lidar com imprevistos, esse é um outro exercício também.


Como costuma ser a reação das pessoas a essa sua escolha e como você lida com isso?


De início geralmente acham estranho, me olham como se eu fosse um E.T., mas quando me conhecem mais um pouquinho, entendem que essa é uma escolha consciente. A maioria relaxa e aprende a lidar comigo nesse modo de baixa conectividade. Na vida profissional eu consigo levar numa boa, porque email ainda funciona, e muito bem. Muitos amigos que gostariam de me ter no Whatsapp, mas é assim, nem tudo é como a gente quer. Com a familia eu consigo resolver usando um software livre de bate-papo que respeita meus principios: o Signal. Eu tenho ele instalado no computador e no celular (mas como disse, só funciona se eu tiver wifi, e geralmente não saio de casa com ele). Com Signal a gente consegue trocar fotos, videos, e mensagens, como a maioria das pessoas faz com Whatsapp. E aos poucos mais amigos entram no Signal, e um dia quem sabe essa não vai ser a regra, e não a exceção...

Essas grandes coorporações não fazem filantropia. Se o serviço é gratuito, é porque você é o produto. Perfis de usuário são usados em massa por empresas de análise de dados, como foi o escândalo recente com a Cambridge Analytica, que deve ter influenciado as últimas eleições doa Estados Unidos. Recentemente o CEO do Facebook teve que se explicar em frente ao congresso americano sobre esse caso, e suas respostas não me convenceram a voltar a usar o Facebook, nem a começar a usar o Whatsapp (que também pertence ao Facebook).

Gosto quando as pessoas me perguntam o porquê de eu não fazer parte das redes sociais, tentam entender, e se colocam na minha pele, com meus princípios de privacidade e código aberto, mesmo que os dele(a) sejam diferentes, e ao invés de julgar entendem que comigo é assim. Fico frustrada quando as pessoas tentam me convencer, ou querem forçar a barra pra eu abrir uma "exceçãozinha", como se o custo da minha escolha tivesse um impacto que os outros não merecem. Acho essa interpretação equivocada, mas hoje aprendi a rebater menos, simplesmente fico na minha, e só falo dessas coisas quando me perguntam ;-)


O que você acha sobre a forma como as pessoas têm usado a tecnologia?


Eita, eu poderia passar horas falando disso ;-)

Tecnologia é uma ferramenta, que pode ser usada para o bem ou para o mal. E o mal de que falo pode ser referente aos outros, ao meio ambiente, e muitas vezes a vc mesmo. O fato é que muita gente não usa esses "gadgets que nos levam pra um outro lugar" de maneira saudável, e eles tomam um espaço muito grande na vida de todos, e muitos nem percebem que a vida real tá passando do lado... 

Vários estudos científicos apontam que o uso de redes sociais está inversamente relacionado com sua saúde mental: quanto mais você usa, pior você se sente. Achei aqui um artigo interessante sobre o tema. Já o artigo científico pode ser lido aqui.

Mas vejo isso como uma questão de saúde pública, não quero crucificar os "viciados" nas redes. Acho que essas pessoas são vítimas de um sistema que explora nossas vulnerabilidades. Sim, somos todos seres humanos, e temos certas fraquezas... que são engenhozamente exploradas pra nos manter plugados.

Como você acha que vai ser o futuro da tecnologia e das relações pessoais?


Você assistiu algum epsódio da série Black Mirror? Alguns são assustadoramente realistas. Acho que a espécie humana não tá muito longe de viver aqueles episódios na vida real. E sabe lá onde isso vai dar...

Mas voltando pra sua questão, o fato de as pessoas se transferirem pra um espaço virtual e se desconectarem do que está à sua volta, na constância com que se faz hoje, acho bem complicado. Eu tento estar presente em carne e osso onde quer que eu esteja, então tento não ficar conectada, ligada em coisas remotas, principalmente quando tem coisa interessante acontecendo do meu lado. 

Lembra daqueles papos de fila de banco ou de ponto de ônibus, ou de consultório médico? Era gostoso olhar ao redor e conectar com o olhar das pessoas. Hoje é difícil você ver as pessoas "apenas" pensando na vida, abertas a uma comunicação espontânea, tá todo mundo se escondendo atrás de um gadget! Sei que pode parecer exagero, ou parece até que sou uma tia velha falando como eram as coisas no meu tempo... mas é assim, acho que tou ficando velha mesmo e sinto falta dessas conexões com seres humanos na vida de hoje.


Interessante reflexão né? E você, já parou para pensar sobre as escolhas que você tem feito com relação a conexão? 

Quer mais reflexões sobre isso? Vê a resenha do post da semana passada aqui que tem umas ideias também interessantes.

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2 comentários

  1. Excelente entrevista. Tássia, gostei muito das suas colocações. Tenho estudado esse tema para fins de pesquisa. Dias desses fiz uma apresentação e um dos pontos q levantei foi sobre a série Black Mirror, q parece ficção, mas está tão próxima da realidade.

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